28.6.07
Bruno Tolentino
1940-2007
Faleceu ontem, em São Paulo, o poeta e amigo Bruno Tolentino.
Juntou-se a W. H. Auden e a Saint-Jonh Perse, dois dos grandes poetas que o admiravam.
Foi um homem de inteligência fulgurante e profundamente humana.
Tive a honra de ser brindado com sua vasta cultura e apuradíssimo senso poético.
Lembro de visitá-lo, ali na rua Monte Alegre, onde morava desde que voltou ao país.
Por vezes saímos para conversar e almoçar. Meu privilégio.
Vai fazer muita falta. Perde o Brasil um dos seus poetas maiores.
Fica sua poesia magistral e a saudade de seus amigos.
O Espectro
Bruno Tolentino
A Ivan Junqueira
Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa
à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.
Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem
que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor
fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave
levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,
com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante
fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia
surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim
à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,
seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,
qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,
arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio
obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar
antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.
Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire
do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado
ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.
E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída
e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia
a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania
havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,
mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras
os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.
Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,
e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume
de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando
de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)
um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,
entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,
de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte
entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria
de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração
à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,
de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva
quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa
amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber
um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,
como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo
escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.
Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina
por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,
mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,
entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;
fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta
para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa
entre o número, o nada e a noite escura...