29.1.10

 

Pé Quebrado
Sergio Pinheiro Lopes


O princípio foi pura felicidade, não que isso exista, mas pura felicidade em comparação com o antes e o depois. De qualquer forma, dias muito bons, mas muito bons mesmo. Trabalhavam, mas almoçavam em casa. Na verdade, não trabalhavam tanto. Tinham muitas horas de ócio, amor, irresponsabilidade e contemplação. Às vezes, até dormiam depois do almoço. Tinham pouco passado e o lugar era iluminado, arejado e com uma vista linda. Eram novos um para o outro e ambos para a vida. Tudo estava por fazer e foram devagar, curtindo, aproveitando. Amavam como se não houvesse o dia de amanhã.
Mas havia.

Papel, algodão, couro, flores, madeira, ferro e cobre...

Depois – o depois, o depois... – vieram as responsabilidades, quem lava, quem enxuga, quem arruma, quem contribui com quanto para as despesas. Mas mesmo essas eram novas e tinham um plano. Seriam os primeiros, um dos primeiros casais a dividir tudo. E era ao mesmo tempo ilusão, como tantas são as ilusões, mas fez seu efeito: gerou liberdade, e com ela a solidão; gerou respeito, e com ele o silêncio, engendrando-os pessoas.

Bronze, cerâmica, latão, aço, seda, renda e mármore...

Os dias do meio, nem começo e nem fim. Construíram-se diferenças e acordos, adaptações, concessões mútuas. Renúncias, compromissos, a insidiosa delimitação dos espaços.
Um rio principia pequeno, aumenta, briga com as margens para depois – o depois, o depois... – se espalhar, correr mais tranqüilo, mais confortável entre seus limites: assim passa o tempo. Houve calma e houve confusão, encontros e desencontros, entregas e silêncios. A sinceridade como virtude, a verdade como aflição. E o rio corre, sem perguntas e sem respostas, apenas corre.

Cristal, porcelana e prata...

O desenlace é somente um momento, o instante em que a água ferve. Mas já estava lá, na raiz, nos genes, na gênese. É como uma presença disfarçada de cotidiano, uma sombra aceita como conseqüência inevitável da luz. Incompreensível, final e indiscutível. Algo que se desfaz, esboroa, esgarça e pui.

E de volta ao antes, ao princípio, em forma de depois do depois.


Uma mesma matéria: poeira e estrelas.


27.1.10

 

A Interpretação dos Sonhos
Sergio Pinheiro Lopes


Estava sentado em um boteco outro dia – tomando um iogurte com adoçante, agora que sou diabético e mantenho distância entre o álcool e meu organismo –, quando vi um sujeito se aproximar do Éder, o apontador de jogo do bicho local.


O Éder usa uma mesa, situada logo do lado de fora do botequim, de onde conduz seu próspero negócio. Ali só se senta para jogar. Ou no bicho, ou conversa fora, mas, neste caso, só a convite.


De todo modo o sujeito sentou-se e começou a contar, sem preâmbulo algum, um sonho que tivera.


O bicho existe no Brasil desde que o Barão Vianna Drummond, adaptando uma idéia sobre flores do mexicano Manuel Zevala, resolveu dar bom uso aos 25 animais que tinha no Zoológico de sua propriedade, na cidade do Rio de Janeiro. Isso em 1892. A idéia deu muito certo e não só para o Barão. O bicho enricou muita gente, mas empobreceu, inda que a conta-gotas, muitas outras também.


Uma das fontes mais importantes, se não a mais, dos palpites para o bicho está nos sonhos. Já interpretá-los não é para qualquer um. Há que se ter ciência. Por exemplo, sonhar com um número não deve levar, hidraulicamente, a jogar no próprio. Matemáticas, aritméticas e álgebras, como me informou um sabedor, devem levar a que se jogue no porco, na águia, no veado ou no jacaré. Pessoas nuas e traição, dá mesmo cobra, como talvez fosse esperado. Mas isso não quer dizer muito. Por exemplo, jogar no placar de um jogo sonhado é fria, jogo de azar, em sonho, é tigre, e não tem conversa.


Mas vamos ao sonho daquele sujeito: sonhara com um monte de passarinhos, dentro de um ônibus cor de laranja cujo destino era o bairro do Socorro.


As perguntas do apontador permeavam a narração, como que para esclarecer pontos obscuros, mas potencialmente relevantes para o diagnóstico correto: “Você estava dentro do ônibus... Não? Hmmm. Então não era viagem. Esse ônibus era grande? E a cor laranja? Era brilhante? Tinha outras cores no sonho?”


Tinha, tinha muitas cores. O palpite veio preciso. Jogue no pavão. Por que? Porque o sonho é colorido, e o pavão, com aquela festa de cores, é o bicho certo para esse sonho. O freguês assentiu e jogou na indicação. Setenta e quatro.


Não sei que bicho deu, mas fiquei pensando... Não poderia ir tão longe a ponto de dizer que aquilo tenha a mais remota semelhança com a psicanálise, mas não deixa de ser uma interpretação de sonhos. Vai saber se não alivia uma criatura de Deus sem o mínimo acesso à psicanálise, poder contar seus sonhos para alguém, ainda mais com a possibilidade de uns caraminguás de lucro como resultado.
Uma terapia tropical.


Aparentemente o vaguear dos pensamentos, em plena vigília, não corresponde especificamente a bicho nenhum. Assim sendo, pensei em jogar no camelo, que é um ruminante, pela semelhança com o ruminar dos pensamentos. Depois hesitei e considerei o macaco, afinal nosso antepassado é o bicho mais provavelmente responsável pelo nosso pensar à-toa. Mas finalmente decidi pelo elefante, por ser um animal mais simpático do que o macaco. Ninguém descende de elefantes e ele é a criatura que acho mais interessante. Como diz o Brecht em um poema, ele é grande, mas de cor discreta. Tem um corpo enorme, mas se alimenta de pequenas coisas. Possui uma memória prodigiosa e, elegantemente, se retira para morrer. Além de patrono das artes por fornecer o marfim. Afinal joguei no quatro mil setecentos e quatorze.


Ainda não tive oportunidade de conferir o resultado, mas a gente nunca sabe, vai que acertei no milhar.

25.1.10

 

25 de Janeiro
Sergio Pinheiro Lopes


Nasci um ano antes do Quarto Centenário que foi quando inauguraram o
Ibirapuera. Tinha barcos a remo e a motor no lago para passear e um restaurante ao lado do deck. Ia-se a pé por ruas de sibipirunas e tipuanas. Os Jardins podiam ser chamados de Pomares: havia ruas com jabuticabeiras, amoreiras, pés de café (tinha um na frente de casa) e muitas outras. As pajens - era assim que chamavam - andavam com os carrinhos de bebê nas praças, os táxis e os telefones eram pretos, os guarda-civis tinham uniforme azul e usavam luvas brancas e dava para jogar bola na Rua Estados Unidos. No centro da Praça das Guianas tinha uma árvore imensa e quando eu era menino dava para ficar contando os carros que passavam na 9 de Julho. Era lá que tinha a parada de 7 de Setembro e no Carnaval tinha corso na Avenida Brasil.

O Harmonia não era clube de gente metida e a Rua Canadá inundava em dia de chuva. O Morumbi não existia. A cidade acabava lá pelo Jockey Club, depois era o pasto.


Hoje ando como alma penada nessa minha cidade, arrancando pedaços de memória das poucas casas que restaram, de um quebradinho na calçada, de uma ou outra árvore. Meu Tio Julinho parava o carro naquela esquina quando vinha tomar lanche no domingo e a Casa América tinha o melhor sorvete de pistache do mundo. O primeiro supermercado da cidade chamava-se Sirvase e era na Rua Augusta. Um pouco mais para cima tinha o Cine Paulista e a primeira lanchonete que só vendia Hot-Dog com fritas e Hot Fudge Nut. Ia para o cinema, para a escola, para o clube, para visitar minha avó, tudo de bonde.

Depois veio o onibus elétrico que fazia hmmmmmmm quando acelerava. A Praça das Bandeiras chamava O Piques e a Rua Direita era torta. O Cine Marrocos era o mais aconchegante e a Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, era restaurante de gente educada. Comia-se bem. Tinha a Praça da República e flores no Largo do Arouche - acho que ainda tem. As meninas do Externato Meira eram as mais galinhas e o Consulado Americano ficava no Conjunto Nacional, aquele, que tinha o relógio da Willis (Overland do Brasil). O crioulo que fazia as entregas da Mercearia Vera chamava-se Sagui e todo dia era possível cruzar com o escocês e seu coolie. O tempo era nublado e sempre garoava. A cidade era mais fria e as pessoas mais quentes. Dormia-se de janela aberta e meu cachorro (Paddy) andava solto. Todo mundo conhecia.

Todas as ruas eram de paralelepípedos e esses meus cabelos brancos são apenas um disfarce, nunca cresci: continuo menino e continuo contando os carros.

Hoje é aniversário de São Paulo.

20.1.10

 

O Fim do Mundo
Sergio Pinheiro Lopes


O mal existe sobre a terra”

O primeiro choque veio em um dia ensolarado. Os relatos variam a respeito da hora exata, mas todos concordam que não havia uma nuvem sequer nos céus.

Esse primeiro choque durou de seis a sete minutos. Cinco minutos de intervalo até o segundo choque. E três minutos mais tarde o terceiro.

Em quinze minutos a cidade estava em ruínas. Quase tudo caiu. O palácio, os tribunais, a alfândega, as lojas. Restaram montes de escombros, alguns com vários andares de altura. O colapso de tantos prédios custou milhares de vidas. Há relatos de que se ouviam os sinos das igrejas tocar antes de cairem no chão com um estardalhaço metálico. Quase que imediatamente começaram os incêndios. Relíquias sagradas, bibliotecas, tapeçarias, mobília, altares, tudo terminou em chamas. Várias prisões ruíram, inclusive a mais notória, e um exército de condenados invadiu a cidade. Mas parecia haver mais criminosos nas ruas do que os que estavam nas prisões. Muitos dos roubos e assaltos podem ter sido motivados pela luta pela sobrevivência.

O governo que, mal e mal, havia, sumiu. Como sumiram também toda autoridade política e toda ordem social. Tudo desintegrado.

Essa é uma pequena descrição do terremoto de Lisboa em primeiro de novembro de 1755. Dia de Todos-Os-Santos. Uma das muitas vezes que o mundo acabou.

As estimativas sobre o total de mortes variam de 15.000 a mais de 75.000. Historiadores modernos tendem a acreditar que o número correto seja provavelmente de cerca de 30.000, o que seria mais de dez por cento da população, o equivalente a quase um milhão de pessoas na Nova York de hoje.

Ao terromoto seguiu-se um tsunami. O rio Tejo recuou até que, segundo alguns, podia-se ver seu leito lamacento e, segundos depois, uma imensa onda de mais de dez metros de altura caiu sobre a cidade.

Um grito generalizado podia ser ouvido: 'O mar está entrando, estamos todos perdidos.'

A maior preocupação do Rei parecia ser se deveria ou não abandonar Lisboa de vez, mudar sua corte para o norte e estabelecê-la em Coimbra.

Dizem que quando Sebastião José de Carvalho e Mello, mais tarde conhecido como Marquês de Pombal, chegou à corte e o Rei lhe perguntou em desespero: 'O que fazer para enfrentar essa aflição, esse decreto de justiça divina?', Sebastião respondeu: 'Enterrar os mortos e alimentar os vivos.'

Em 1755 o Marques de Pombal tomou conta da situação. Sua primeira medida foi fechar as saídas da cidade para impedir que refugiados fugissem para o interior. Para impedir a fuga das coisas saqueadas e para manter a força de trabalho na cidade. A seguir ergueu quatro forcas no centro da cidade, qualquer um pego roubando ou saqueando era executado imediatamente. Enforcou trinta e quatro. Com a autoridade restabelecida, tratou de fazer o que dissera ao Rei ser necessário. Fez um acordo com a igreja que permitiu que os corpos fossem jogados ao mar. Para alimentar os vivos abriu celeiros e mercados de carne pela cidade, estabeleceu distribuição de sopa para a população em diversos lugares. Decretou que qualquer pessoa sem ocupação fosse colocada para trabalhar na remoção dos escombros e na reconstrução. Estufas e fornos para cozer tijolos foram construídos. Suprimentos de madeira foram expropriados. Carroças também. Houve ajuda externa: dos espanhóis, dos inglêses e até da cidade de Hamburgo. Assim começou a reconstrução.

A República Dominicana e o Haiti partilham a ilha de La Hispaniola. Dois terços são ocupados pelo primeiro país e um terço pelo segundo.

Os dois países tem uma longa história de conflito.

A República Dominicana não parece ter um futuro brilhante. Os últimos governos foram corruptos, interessados apenas em ajudar os próprios políticos e seus amigos. A economia enfrentou muitos choques. Entre eles o colapso da indústria do açúcar, a competição crescente de outros países com mão de obra mais barata, a falência dos dois bancos mais importantes e o governo tomando emprestado e gastando mais do que pode. Na opinião de alguns dominicanos mais pessimistas, o país caminha em direção a tornar-se um outro Haiti. Mas mais rápido do que o próprio Haiti. Pelo menos assim achavam até terça-feira, 12 de janeiro de 2010.

E o Haiti?

O Haiti não tem, e já não tinha mesmo antes do terremoto, sequer a capacidade de utilizar assistência externa de modo eficiente.

Mais de um milhão de pessoas de ascendência haitiana vivem e trabalham na República Dominicana, a maior parte ilegalmente. Eles são cerca de 12% da população. Compensam um exôdo equivalente de dominicanos para fora do país. Os haitianos trabalham em funções que os dominicanos não querem exercer. Na construção civil, na agricultura, no corte da cana de açúcar, na indústria do turismo; como seguranças, como domésticos e como entregadores. Não tem direito a educação, a serviços médicos ou a planos habitacionais. Os nativos da terra e os emigrantes divergem culturalmente também: falam línguas diferentes, vestem-se de modo diferente, comem comidas diferentes e tem aparência diversa de modo geral. Os haitianos são mais escuros e são tratados pelos dominicanos como se fossem africanos e inferiores.

A República Dominicana é mais afetada pelo Haiti do que por qualquer outro país do mundo.

Os haitianos não esquecem o massacre ordenado por Trujillo: mais de 20.000 haitianos foram mortos a golpes de machete em 1937. Os dominicanos não esquecem os vinte e dois anos de ocupação haitiana no século dezenove.

No entanto, sem colaboração entre os dois países, depois que o terremoto sair das manchetes, não haverá futuro algum. Para nenhum dos dois países.

E ainda não há um Marques de Pombal por lá.


Bibliografia:

The End of the World – A History, de Otto Friedrich.

Fromm International Publishing Corporation.

1982.

Collapse – How Societies Choose to Fail or to Survive, de Jared Diamond.

Penguin Books.

2005.

Título e citação inicial de Otto Friedrich.


17.1.10

 

Joaquim Nabuco


"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ela guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte."

Joaquim Nabuco

Texto citado em um CD do Caetano Veloso.

Lentamente nos descobrem a alma. Nossa falta de senso e excesso de sentidos são aos poucos vislumbradas por nossos poetas, desencavadas de nosso passado comum onde jaziam escondidas entre as linhas, entre os parágrafos de nossos cronistas. E são trazidas para ver a luz do dia, à luz dos olhos, para nos contemplar o rosto e dizer que pois existimos já há muito tempo.

Hoje se comemora o centenário da morte do grande Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo.


15.1.10

 

Extraterrestres
Sergio Pinheiro Lopes


Gosto de cachorros. Tive um quando era criança. Chamava-se Paddy e uma vez até, minha mãe, que trabalhava no Moinho Santista, emplacou um pulôver de cachorro com o nome dele bordado em uma propaganda. Eu gostei, ele nem ligou.

Gosto de cachorro, mas hoje não tenho. Tenho um gato, melhor dizendo, uma gata, chamada Mel (podia chamar-se 'Velcra', às vezes). Não tenho porque minha casa não comporta e, desconfio, minha gata não suporta. É verdade que muita gente tem cachorro em apartamento, portanto seria possível ter um em minha casinha. Para isso, no entanto, teria que levá-lo passear duas vezes por dia, ou suprema humilhação, pagar alguém para fazer isso.

Aí está o xis da questão.

Cachorros não são como gatos. Gatos são autolimpantes e enterram seus dejetos. Cachorros não. Precisam sair às ruas para fazer suas necessidades e gastar energia. E como cachorro tem energia! Gatos, por outro lado, dormem dezesseis horas por dia. Antigamente não havia problema, os cachorros, assim como os gatos, viviam soltos, saíam a se aventurar pelas ruas e depois voltavam felizes, belos e faceiros, salvo um ou outro acidente ou incidente. O Paddy, por exemplo, uma vez em que um entregador de mercearia se distraiu, bifou e jantou um quilo de filé-mignon do coitado.

Mas divago. O que queria dizer é que se extraterrestres por acaso viessem nos espiar e nos vissem passeando cachorros pelas ruas, andando atrás deles e recolhendo seus dejetos com saquinhos plásticos, qual você acha que eles concluiriam ser a raça dominante?

Os ETs provavelmente vêem as pessoas, os cachorros e seus cocôs, a desgraceira que nós, os outros cães, estamos fazendo dessa Terra e resolvem esperar outras tantas centenas de anos até vir dar uma checada novamente, prá ver se por acaso tomamos jeito.

Na minha opinião a maior prova de que existe vida inteligente fora do nosso planeta é que eles não descem.

8.1.10

 

Caetanos Velosos
Sergio Pinheiro lopes


Outro dia li em uma crônica do Ivan Lessa no sítio da BBC Brasil, duas coisas que me chamaram a atenção. Uma delas é que sempre que está para lançar um CD, um DVD ou um show, o Caetano Veloso arruma uma polêmica.

Até aí, fora a bela sacada do Ivan, nada de mais. É o marketchim do célebre artista baiano.

Depois o Ivan dá algumas informações dessas que se encontravam nos almanaques de antigamente, e essa foi a outra coisa que me chamou a atenção. Ele garimpou que uma pulga pode pular até 350 vezes o comprimento do próprio corpo, e acrescentou: 'é como se um Caetano Veloso pulasse a distância de um campo de futebol'.

Isso me deu uma idéia.

Poderíamos medir as coisas em Caetanos Velosos.

Supondo que o Caetano Veloso tenha 1.75 m de altura, poderíamos dizer que tal lote tem 20 Caetanos Velosos de frente por 50 Caetanos Velosos da frente aos fundos.

Ou supondo que ele pese 70 quilos, poderíamos dizer que um leãozinho pesa 1.40 Caetanos Velosos.

As possibilidades são infinitas.

Caetanos Velosos quadrados ou Caetanos Velosos cúbicos, por exemplo.

Caetanos Velosos de idade, por que não, por que não, já que sabemos que ele nasceu em 1942. O Oscar Niemeyer, que está com quase 102 anos, tem quase 1.5 Caetanos Velosos de idade.

Densidade, velocidade, duração e datação seriam outras medidas possíveis.

Getúlio Vargas tomou o poder a.C.V., em 1930; já Lula ascendeu à presidência d.C.V., em 2003.

É isso mesmo, com o tempo abreviaríamos tudo.

Tantos CVs quadrados, ou CV2. Tantos CVs cúbicos, ou CV3.

E assim por diante.

Desta forma ele estaria inserido na cultura brasileira de modo ainda mais indelével e permanente.

Seria citado com uma frequência bem maior. Estaria na boca do povo, como se diz, diariamente.

E não se diga que não há precedente na cultura popular brasileira: o nome dele já designa, informalmente, os sistemas de câmeras instalados em semáforos para flagrar motoristas que os desrespeitam. Os populares Caetanos.

Poderíamos ir muito além.

Que tal?

Fica a sugestão.


2.1.10

 

Uma Tarde Azul
Sergio Pinheiro Lopes


Lugar: Travessa dos Cataventos.

Horário: digamos por volta de meio-dia.

Coloco a sacola com os livros, comprados num sebo da Rua da Praia, em cima de uma mesinha do lado de fora do restaurante. Estou suando em bicas da caminhada e peço ao rapaz na mesa ao lado para olhar a sacola enquanto finjo ir ao banheiro para desfrutar um pouco do ar-condicionado no lado de dentro.

Na volta, mais refrescado um tantinho, sento-me à mesinha. Logo a seguir, uma senhora que havia visto sentada lá dentro, sai para fumar um cigarro.

O dia já começara bem. Sol, cidade nova (para mim, naturalmente), arborizada, agradável e disposição para sair à caça de seus tesouros.

Encontrei a primeira preciosidade na figura da Regina - simpática moça que trabalha no Espaço Mario Quintana – e outras nos livros de Ivan Pedro de Martins e no diário de Cecília de Assis Brasil.

Mas o melhor ainda estava por vir.

A senhora que saíra para fumar pergunta ao rapaz se pode partilhar de sua mesa enquanto fuma. Ele acede e me convida para juntar-me a eles.

Foi o começo de uma conversa pra lá de gostosa que levou horas, mais de duas só para nos interessarmos pelos nomes uns dos outros, tão leves e à vontade que estávamos os três.

Falamos de tudo um pouco. Da educação no Brasil, passando pelos melhores lugares de Porto Alegre, pelas cidades próximas que eram agradáveis no verão, das nossas profissões (ela educadora, ele músico, embora ainda dê expediente no Banco do Brasil), dos políticos e suas politicanalhices, das respectivas famílias, da vida que passava, da que já passou e da que ainda vai passar.

O Marcos, por exemplo, mencionou um escritor e uma cantora que não conhecia e que bastou chegar a São Paulo para ver na imprensa, como sói acontecer. Eu é que nunca tinha ouvido falar deles. Ainda não comprei o livro do escritor – João Gilberto Noll -, mas já estou ouvindo a Maria Gadu. Bela dica.

A alegria de viver e a disposição de Dona Yara me fizeram um bem danado naquele começo de tarde e me deu um saborear da cidade que teria sido impossível de outra forma.

Gostei barbaridade de Porto Alegre, tchê!, e não só por este auspicioso encontro casual.

A cidade é cheia de itens civilizados: desde faróis para pedestres que marcam o tempo que ainda resta para atravessar a rua, carros que param quando um pedestre pisa na faixa, até dispensadores de saquinhos plásticos para quem leva os cachorros para passear.

Afora, é claro, a gentileza, o calor e a urbanidade dos habitantes, de que são prova meus simpáticos companheiros de mesa.

Para não mencionar que lá é possível, para os que ainda teimam em fumar como eu, sentar em mesinhas de calçada e desfrutar do convívio das pessoas, três dos meus grandes prazeres na vida.

Ah, estávamos os três usando peças azuis, donde o nome desta crônica.

Por conta de tudo isso terminei 2009 e comecei os vinte-dez com o espírito alegre e feliz.




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