27.1.10
A Interpretação dos Sonhos
Sergio Pinheiro Lopes
Estava sentado em um boteco outro dia – tomando um iogurte com adoçante, agora que sou diabético e mantenho distância entre o álcool e meu organismo –, quando vi um sujeito se aproximar do Éder, o apontador de jogo do bicho local.
O Éder usa uma mesa, situada logo do lado de fora do botequim, de onde conduz seu próspero negócio. Ali só se senta para jogar. Ou no bicho, ou conversa fora, mas, neste caso, só a convite.
De todo modo o sujeito sentou-se e começou a contar, sem preâmbulo algum, um sonho que tivera.
O bicho existe no Brasil desde que o Barão Vianna Drummond, adaptando uma idéia sobre flores do mexicano Manuel Zevala, resolveu dar bom uso aos 25 animais que tinha no Zoológico de sua propriedade, na cidade do Rio de Janeiro. Isso em 1892. A idéia deu muito certo e não só para o Barão. O bicho enricou muita gente, mas empobreceu, inda que a conta-gotas, muitas outras também.
Uma das fontes mais importantes, se não a mais, dos palpites para o bicho está nos sonhos. Já interpretá-los não é para qualquer um. Há que se ter ciência. Por exemplo, sonhar com um número não deve levar, hidraulicamente, a jogar no próprio. Matemáticas, aritméticas e álgebras, como me informou um sabedor, devem levar a que se jogue no porco, na águia, no veado ou no jacaré. Pessoas nuas e traição, dá mesmo cobra, como talvez fosse esperado. Mas isso não quer dizer muito. Por exemplo, jogar no placar de um jogo sonhado é fria, jogo de azar, em sonho, é tigre, e não tem conversa.
Mas vamos ao sonho daquele sujeito: sonhara com um monte de passarinhos, dentro de um ônibus cor de laranja cujo destino era o bairro do Socorro.
As perguntas do apontador permeavam a narração, como que para esclarecer pontos obscuros, mas potencialmente relevantes para o diagnóstico correto: “Você estava dentro do ônibus... Não? Hmmm. Então não era viagem. Esse ônibus era grande? E a cor laranja? Era brilhante? Tinha outras cores no sonho?”
Tinha, tinha muitas cores. O palpite veio preciso. Jogue no pavão. Por que? Porque o sonho é colorido, e o pavão, com aquela festa de cores, é o bicho certo para esse sonho. O freguês assentiu e jogou na indicação. Setenta e quatro.
Não sei que bicho deu, mas fiquei pensando... Não poderia ir tão longe a ponto de dizer que aquilo tenha a mais remota semelhança com a psicanálise, mas não deixa de ser uma interpretação de sonhos. Vai saber se não alivia uma criatura de Deus sem o mínimo acesso à psicanálise, poder contar seus sonhos para alguém, ainda mais com a possibilidade de uns caraminguás de lucro como resultado.
Uma terapia tropical.
Aparentemente o vaguear dos pensamentos, em plena vigília, não corresponde especificamente a bicho nenhum. Assim sendo, pensei em jogar no camelo, que é um ruminante, pela semelhança com o ruminar dos pensamentos. Depois hesitei e considerei o macaco, afinal nosso antepassado é o bicho mais provavelmente responsável pelo nosso pensar à-toa. Mas finalmente decidi pelo elefante, por ser um animal mais simpático do que o macaco. Ninguém descende de elefantes e ele é a criatura que acho mais interessante. Como diz o Brecht em um poema, ele é grande, mas de cor discreta. Tem um corpo enorme, mas se alimenta de pequenas coisas. Possui uma memória prodigiosa e, elegantemente, se retira para morrer. Além de patrono das artes por fornecer o marfim. Afinal joguei no quatro mil setecentos e quatorze.
Ainda não tive oportunidade de conferir o resultado, mas a gente nunca sabe, vai que acertei no milhar.