26.10.07

 

Um Passeio Real
Sergio Pinheiro Lopes


Se uma pessoa for acreditar e seguir todos os conselhos que aparecem a toda hora na imprensa a respeito de vida saudável, desconfio que provavelmente enlouqueceria.
Isto dito, depois de completar cinqüenta anos, resolvi que passaria a andar, no mínimo, a tal da meia- hora por dia que dizem ser essencial a um coração saudável, já que nunca fui pessoa de brincar com assuntos de coração.
Adotei um caminho que tem uma subida de cerca de um quilometro, no topo da qual existe um parque e, do outro lado da rua, uma padaria.
Ali, depois do parque, me acomodo em uma mesinha do lado de fora, tomo um ou dois cafés, fumo um cigarro e leio um pouco – sim, eu ainda fumo – e depois volto para casa descendo a ladeira pelo outro lado da rua.Esse passeio tem dois pontos altos: o parque e a padaria.
O parque – ao redor de uma caixa d’água daquelas da minha infância – tem quase tudo que se pode querer de um parque de bairro. Crianças, mamães, um ou outro papai ocasional, babás, tanquinhos de areia, bancos à sombra e ao sol, gente fazendo ginástica, desde aquelas do tipo ordem unida até tai-chi, coroas caminhando, uns com mais e outros com menos vigor. Tudo isso cercado de muito verde: belas árvores, pequenos jardins e canteiros de flores e trilhas de cascalho serpenteando por tudo. Só não tem água.
Digo, um laguinho, uma fonte que seja. Nem sequer uma bica para remédio. Bem brasileiro isso de um parque conhecido como “o parque da caixa d’água” não ter nem um espelho de água. Paciência. Gosto dele assim mesmo.
Dou minhas voltas e me dirijo para a parte Real do meu passeio matinal.A Real não é bem uma padaria, para falar a verdade, e fez por merecer o nome. Não vende paõzinho, por exemplo, como se esperaria de uma mera padaria. É restaurante, é lanchonete, e é também uma bela petiscaria, enfim: é única. Mas por conta do passado, acho que a vejo como uma padaria. Existe desde 1934 ou 1937, como mercearia, conforme quem conta a história. De acordo com uma enorme fotografia na parede, começou suas atividades em 1937. Mas um passarinho me contou que começou com apenas uma portinha aberta em 1934. Depois a Rádio Excelsior instalou-se por perto, bem mais tarde a Tupi, rádio e depois TV. Hoje é vizinha da MTV. Podemos dizer que por ali passou e passa uma boa parte da história da televisão e do rádio do país. De Walter Foster e Vida Alves até João Gordo, Léo Madeira e Chico Cézar, que acabou de passar por mim, aliás. Tomo meus cafezinhos, fumo meu cigarro e leio meu livro. Às vezes, encontro um amigo ou uma amiga, e, quando isso acontece, o passeio estica mais um pouco. O Josivan e o Valdo são convocados para trazer outros cafés, e o tempo passa embalado em dedos de prosa.
A ladeira da volta para casa também tem seus pontos altos, se é que posso fazer a piada. Um sebo grande e sortido e uma vídeo-locadora recomendada pelos cinéfilos, onde, por exemplo, se acham filmes que são difíceis de ser encontrados em outros lugares. Ateliês de artistas amigos também são paradas possíveis, agradabilíssimas, pois este é um bairro especialmente bem aquinhoado de artistas.
São Paulo é uma cidade misteriosa, secreta até. Só se revela para aqueles que têm a paciência e a curiosidade amorosa de querer vê-la bem de pertinho.
Aí é linda.

(Crônica publicada no livro Peneira do Tempo que pode ser lido apenas clicando no seu título na coluna de links à esquerda).

Comments:
Essa crônica me enche de saudade de meus tempos de caminhar pelas ruas de São Paulo.
 
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