28.1.08

 

Simpático
por
Simpática


Simpático sugeriu que ela deveria encontrá-lo no seu ambiente.
Durante o dia, no horário matutino, ele poderia ser encontrado num café no bairro da Lapa. Sentava-se numa das mesas da calçada, pedia um café, levava um livro para ir passando o tempo. E um caderninho de anotações. Escrevia romances, contos e crônicas do dia-a-dia da cidade. Sempre usava um colete, desses de fotógrafo.
Sentiu-se como se estivesse invadindo o cenário de um outro autor. Espaço dominado por personagens criados para uma existência literária num livro já escrito ou por escrever. Enquanto caminhava na direção do café, percebeu que os pedestres pareciam movimentar-se de modo coordenado, suave, quase artificial, como que obedecendo ao comando do escritor. Os garçons compenetrados em suas tarefas repetitivas, nenhum copo fora de lugar, nenhum cinzeiro por limpar. Nenhum barulho de pratos ou talheres, nenhum gesto desastrado, nenhuma voz desafinada. Uma atmosfera de total silêncio cercava a mesa onde Simpático, usando os seus óculos de grau, fazia algumas anotações em seu caderninho.
- Olá – disse ela.
Levantou-se imediatamente para cumprimentá-la. Sentaram-se enquanto ele passeava o olhar pelo ambiente como que para certificar-se de que todos estavam em seus devidos lugares. De fato, naquele instante, perguntou a si mesma se ele dedicaria mais do que uma ou duas linhas para descrevê-la em seus escritos. Tinha a impressão de que ocupava uma cadeira antes ocupada por tantos outros candidatos a personagem.
- Transformo tudo em literatura. Digo: vou colocar o que você disse no meu próximo livro, e todos ficam satisfeitos, lisonjeados em fazer parte deste meu universo literário – ele disse orgulhoso.
- Sem dúvida, é uma maneira de alcançar algum tipo de notoriedade.
- E você? Você escreve bem...
- Estou tentando, mas gostaria de ousar mais... meu modo de pensar é um tanto caótico, circular...
- Eu prefiro manter uma certa linearidade nos meus escritos...
Ele virou-se para cumprimentar uma moça que acabara de chegar; ela lançou um olhar curioso para a nova personagem. O interesse foi recíproco. Ele pareceu incomodado, e procurou ignorar a presença da outra. Mas, antes de voltar-se novamente para ela e continuar a conversa, olhou de soslaio para duas mulheres que tomavam café na mesa ao lado. Finalmente satisfeito com a nova disposição dos personagens ao seu redor, olhou fixamente para ela. Os olhos tinham uma coloração particular, tons de verde, cinza ou azul. O queixo erguido de um modo levemente arrogante.
- E então, o que você quer saber sobre mim? – ele perguntou.
Curiosamente ela ficou sem palavras. Tentou articular alguma pergunta, e balbuciou algumas incoerências. Ele pareceu frustrado.
- Pelo jeito não sou muito interessante...
- Não é isso... – e ela percebeu que o que queria saber sobre ele já estava mais ou menos evidente no cenário plácido dos seus escritos, nos gestos pausados, na linguagem não verbal da postura orgulhosa, na insistente procura pelo olhar feminino, na expressão desafiadora dos olhos de cor indefinível.
- Então fale um pouco mais de você – ele disse impaciente. Num movimento brusco para acender o cigarro, quebrou um copo. Ela pensou se era mesmo um acidente, ou mais um elemento dramático para enfatizar o momento de impaciência. Enquanto pensava se aquele copo estava mesmo ali, um garçom veio imediatamente recolher os pedaços.
Ela começou a falar de si mesma. Ele parecia distraído com o movimento na rua, cumprimentava um ou outro conhecido de modo discreto, reclamava dos barulhos ou eventos que pareciam estar fora de lugar. Ela pensou que nada do que dissera tinha algum valor literário, e que portanto, aquelas palavras sobre o seu passado tinham pouco valor para Simpático. Tinham sido desperdiçadas, o caderno de anotações continuava vazio.
- Eu já sei tudo o que há para saber sobre as mulheres – ele afirmou – nada me escapa.
- Eu nada sei dos homens... – ela brincou.
- Não há mesmo nada para saber. What you see is what you get – disse com uma pronúncia perfeita do inglês – Não há nada para procurar, os homens são um tanto óbvios, superficiais... – e disse isso acompanhando com o olhar uma jovem que atravessava a rua. Virou-se para ela sorridente.
- Vamos dar uma volta no parque?
Ele pareceu satisfeito com a nova seqüência de eventos. Pagou a conta e por um breve momento segurou a mão dela ao atravessarem a rua.
- Gosto muito deste parque. Venho sempre aqui.
Era um parque com algumas árvores espalhadas ao redor de uma fonte desligada, seca, empoeirada. O caminho entre as árvores era irregular, aqui e ali um banco de madeira onde casais sentavam-se à sombra para namorar. Percorreram um caminho circular, observando a fonte seca no forte calor do sol do meio-dia.
Ela ficou pensando qual seria o significado da fonte para Simpático; se no passado teria sido uma fonte de água fresca no calor do dia, ou até, se realmente estava ali, existia de fato. Pensou que o sol forte poderia simplesmente estar lhe pregando uma peça. A fonte seria apenas uma miragem; teria sido criada para figurar em algum de seus contos, e depois acabou ficando por ali, esquecida, seca. Ele tinha um sorriso no rosto.
- Quero escrever ainda muitos livros, estou decidido a escrever um livro por ano até os sessenta. É preciso ter planos, menina, o tempo passa...
- Eu não acredito muito em planos, acho que as coisas acontecem meio que por acaso... – e ela percebeu uma brisa, algumas folhas que caíam das árvores.
- Alguma coisa acontece por acaso... – ele disse, acompanhando o seu olhar – mas muita coisa a gente faz acontecer – disse com um movimento dos braços.
E nesse momento, acompanhando o gesto de Simpático, ela passou os olhos por um canteiro de flores delicadas que não havia percebido. Ficou intrigada com o fato de não ter visto o canteiro antes. Ele pareceu lançar um olhar divertido em sua direção.
- Não vai me dizer que você quer ser medíocre...
- De certa forma, o nosso pensamento define o nosso destino – ela se desculpou.
- É um fato – ele disse.
- Às vezes eu tenho medo de pensar.
- Medo de pensar? Essa é boa.
Ele continuou a caminhar e parou por um instante para observá-la. Ela pensou se ele ia finalmente pegar o caderninho de anotações.
- Você é tímida, não é? Sei como são as tímidas... acham que todo mundo está sempre prestando atenção ao que elas fazem ou dizem... no íntimo, são como vedetes, gostam de se exibir.
- Você acha mesmo? Eu nem me acho muito vaidosa...
- O quê? Claro que é. Todo mundo gosta de ser admirado, invejado. Nothing human is foreign to me, esse o meu lema.
- Você é vaidoso?
- Claro... durante muitos anos fui invejado... fui casado com uma mulher linda, todos a admiravam, sempre tive muita sorte...
O olhar de Simpático adquiriu um novo brilho enquanto lembrava de seu passado. Ela sentiu-se levemente desconfortável, colocada em seu lugar, tímida que era. Pensou que, em outros tempos, ele jamais teria lançado um segundo olhar em sua direção.
- Digo sempre para o meu filho: o segredo da conquista é ir sem medo atrás das mulheres mais bonitas, pois a maioria dos homens se intimida diante da beleza...
O ar parecia cada vez mais seco. A brisa agitava um pouco o pó que pairava sobre a fonte. Procurava, procurava e não encontrava. Afinal, onde estava aquele canteiro de flores delicadas?
- Gosto das suas sardas... – disse ele para confortá-la.
Imaginou se em seus escritos ele iria referir-se a ela como “aquela moça tímida sardenta que não sabia fazer perguntas”.
Ingressara naquele cenário de um outro autor sem pesar as conseqüências e agora pagava o preço. Sentia o olhar do autor sobre si mesma, desconstruindo a imagem que construíra a tanto custo, superando traumas, inseguranças, medos. Ela seria então nada mais do que esta tímida vedete, um personagem ridículo, uma figura desinteressante e patética, alguém que não presta sequer para ser um pequeno personagem numa crônica qualquer? Sentiu alguma dificuldade de respirar, o ar muito seco. Teve sede, mas não havia água na fonte empoeirada.
O olhar de Simpático tinha agora um brilho azul metálico, penetrante como uma lâmina. O brilho do olhar ofuscava, o sol brilhava no céu da cor dos olhos dele, a fonte seca. Desesperada, sentiu-se desaparecendo pouco a pouco naquele cenário. Precisava sobreviver, modificar aquele desfecho, mas como? Sentiu-se imobilizada, cercada pelos personagens que agora pareciam sinistros em seu silêncio, o parque sem vida e o olhar duro e afiado de Simpático rasgando o seu rosto.
Fechou os olhos, e pouco a pouco recuperou algum equilíbrio. Respirou com calma, e ficou ouvindo o canto de algum pássaro à distância. Depois de algum tempo imaginou ouvir o barulho da água, a brisa trazendo o ar úmido. A fonte agora brilhando na luz do sol, o canteiro das flores cor-de-rosa contrastando com o olhar cada vez mais azul, quase em tons de verde de Simpático. Um olhar curioso, observando os detalhes de seu rosto. A mão tocando levemente o seu braço enquanto atravessavam a rua novamente na direção do café.
Agora podia ouvir o barulho dos copos e talheres, notou os cinzeiros cheios, risos, garçons desajeitados, atrasados. Homens misteriosos e mulheres complexas entretidos em conversas despreocupadas. Nenhum olhar se voltou para eles, estavam praticamente invisíveis. Simpático absorto em seus próprios pensamentos, um leve sorriso nos lábios, o olhar sonhador, segurando o seu braço de modo protetor, sem olhar para os lados.
Ela queria compreendê-lo. Procurar onde não há. Encontrar o que não existe. Inventá-lo.
- Simpática você! – ele disse abruptamente.
Simpática? ela pensou. Ele me acha simpática? Mas não é isso que os homens geralmente dizem quando querem se livrar de uma mulher? “Você é simpática, mas...”
- Ao invés de ficar tentando ler nas entrelinhas, porque você não dá uma maior atenção ao significado da palavra? Um sentimento de afinidade, proximidade... estava sendo exclamativo, porque estamos nos dando tão bem. Vamos devagar, doucement...
E foram caminhando lado a lado sem maiores preocupações, sem planos. Abandonaram o café. O barulho dos carros, os pedestres apressados, tudo parecia em desordem à medida que se afastavam. Sentiu-se confortável neste novo cenário. Um carro passou de fininho por ele na esquina.
- Você viu?
- Acidentes são imprevisíveis. É preciso ter cuidado.
Simpático pareceu um tanto assustado, intranqüilo, vulnerável, naquele novo cenário. O suor frio escorrendo pelo rosto. O olhar apreensivo, verde, definitivamente verde.
Ela, por outro lado, sentiu-se em seu ambiente, circulando pelo caos, pela incerteza de seus pensamentos. Era novamente personagem principal de um conto, ou ainda melhor, uma heroína de romance. Vaidade, vaidade, ela pensou.
- Adorei conhecer você – ele disse.
E enquanto deixavam o café e o parque para trás, os personagens foram adquirindo contornos indefinidos, múltiplos, apagados. Ficaram por algum tempo ainda em sua memória até finalmente caírem numa espécie de existência presumível.

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