19.2.09

 

Quem e o que matou Líbero Badaró
Sergio Pinheiro Lopes


(Escrito em 1999 e atualizado hoje, entre parênteses)

Das coisas mais sensatas que uma pessoa pode fazer quando está faminto no centro de Sampa no meio do dia, é escolher entre se atirar do Viaduto do Chá ou ir comer um dos mais honestos sanduíches que essa cidade tem (tinha, tinha... já não mais existe) a oferecer, no Lírico, ou então tomar um café no Café Martinelli ou ainda, se o desespero for grande e a grana pequena, comer um churrasco de rua na calçada em frente ao Prédio Sampaio Moreira. O Fondue do Chalé Suíço (também já era), no Othon Palace Hotel (outro que já se foi), só está disponível à noite – a melhor mesa, por falar nisso, é a número um. O amigo também pode abastecer-se para uma noite romântica com molhados finos comprados na tradicional Casa Godinho (esta ainda resiste), fundada em 1887.
O que todas essas casas e coisas têm em comum?
Todas se encontram na Rua Líbero Badaró.
Na noite de Sábado, 20 de setembro de 1830, segundo sabe-se, noite de lua cheia, as ruas estavam cheias de rapazes e moças, passeando pelo centro em meio ao casario colonial da São Paulo de então. Dois tiros de pistola ecoam na Rua Nova de São José. Cai mortalmente ferido, na calçada, o jovem médico, jornalista e professor da Cadeira de Geometria dos Cursos Jurídicos, que mais tarde se tornariam a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Italiano de nascimento, Líbero Badaró veio para o Brasil aos 28 anos de idade, provavelmente atraído pela nossa exuberante e abundante fauna e flora tropicais que queria estudar. Passou os primeiros dois anos na Corte, aprendendo a língua e se inteirando dos absurdos políticos de D. Pedro I, muito mais afeito as graças e venenos de suas numerosas mulheres do que aos negócios do reino. Não tardaria o Sete de Abril em que abdicaria – engraçado, acho que já vi esse filme antes, ou depois, sei lá. Em 1828, Badaró muda-se para Sampa e, além de lecionar nos Cursos Jurídicos, torna-se muito popular por exercer gratuitamente a medicina, tornando-se um dos mais requisitados parteiros da Província.
Quatro tiros ecoam na manchete escancarada de 1999, pregada do lado de fora da banca de jornal na esquina do Viaduto do Chá que anuncia que um líder sindical fora baleado após denunciar corrupção no governo do município.
Nos 169 anos entre um crime e outro, além do nascimento, vida e decadência de uma entre as muitas ruas de Sampa, houve um infinito de favelas navais, chacinas, movimentos e revoluções: da de 32 até as Diretas Já. Tudo passa nesta cidade que ora passa.
Acontece que o jovem médico começa a se inquietar com a política local. Mandos e desmandos do então Governador da Província, o Bispo Dom Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade e de seu vice, o Ouvidor Cândido Ladislau Japiaçú levam o nosso esculápio a fundar um jornal: O Observador Constitucional – o novo paladino da imprensa paulista. Os artigos de Badaró, se por um lado eram capengas no uso da língua Portuguesa, compensavam por isso com uma virulência destemida contra uma situação política insustentável. Os dois governantes reagiram de modo diverso: o bispo, talvez por ser membro do clero, conteve-se, mas o Ouvidor Japiaçú passou a fazer ameaças aos quatro ventos, para quem quisesse ouvir.
Naquela noite de setembro, o trágico desfecho.
Uma caminhada solitária, hoje em dia, em um domingo deserto, por exemplo, de um largo ao outro, de um santo ao outro, isto é, do Largo de São Bento ao Largo de São Francisco, apresenta a mesma desolação: prédios em ruínas, construções que seriam monumentos arquitetônicos em qualquer capital educada do mundo. Nós aqui, sem nenhuma guerra de permeio que nos enobreça, destruímos todas as lembranças. Barateamos toda nossa possível cultura e temos apenas os crimes para lembrar. E para distrair, neste triste passeio, apenas o cheiro enjoativo de churrasco de gato e pinga que vem dos pobres excluídos dormindo sob as marquises. A rua está decadente.
No dia seguinte ao assassinato de Badaró, passeatas de protesto. Os manifestantes cercam e invadem a casa do ouvidor onde são presos no quintal os alemães executantes do bárbaro atentado. Apenas um deles teve seu nome registrado, Chapéu de Couro, digo, Simão Stock. Foram condenados à morte. Já o Deputado, desculpe-me, o Ouvidor Japiaçú, o mandante do crime, foi levado a julgamento na Corte e, adivinhem, foi absolvido...
Líbero Badaró, no seu leito de morte, cercado dos jovens alunos, diz a frase pela qual seria lembrado e que está inscrita em seu túmulo no Cemitério da Consolação:
- Morre um liberal, mas não morre a liberdade!
Hoje, apenas magros protestos e a apatia cômoda de sempre. Mas a despeito do que nos mata todos os dias nesta cidade, sempre é possível olhar para cima e, por alguns instantes, vislumbrar a monumental arquitetura e a silenciosa história guardada por estes prédios e estas ruas. A espera, na verdade, do momento em que quem e o que matou Libero Badaró, volte os olhos para cima e perceba a própria história.

Fontes: Crimes e Criminosos Célebres de Raimundo de Menezes – Livraria Martins Editora - 1950. “Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa”, Melhoramentos, 1998.

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