13.5.10
Tio Plácido
Sergio Pinheiro Lopes
Eu morava em um porão na rua Pará. A casa era alugada por um encanador que tinha uma oficina, onde era a garagem, e sublocava os diversos quartos para uma variedade de pessoas. Lembro-me de um indiano da África do Sul que era marceneiro. Quando desistiu do Brasil e voltou para a África, me deixou de herança todas as suas ferramentas. Havia outros vizinhos que ocupavam quartos na tal casa de cômodos. Tinha o João, a respeito de quem já escrevi, e uns cariocas que mudaram para o porão maior, entre outros.
Ignorada pelo dono do cortiço, a maioria dos habitantes era adepta do consumo de um fuminho. Quero dizer, maconha – que deveria se chamar “boaconha”: erva, diamba, jererê. Era a década de setenta, quando ter cabelo comprido, usar roupas largas e fumar um bagulho era uma forma de resistência cultural à ordem então vigente. Éramos, portanto, com exceção do dono do lugar e seus clientes, naturalmente, uma comunidade fumante e alternativa.
Foi então que um dos cariocas, de quem não lembro o nome, comunicou a todos que seu pai vinha de visita e seria melhor a gente se cuidar um pouco com os papos e o consumo mais aberto dos baseados.
Ele veio. Magro, alto, já de cabelos brancos e óculos de grau, tipo fundo de garrafa. Boas pedras e cordato, não enchia o saco de ninguém e era excelente papo. Tinha sido boêmio a vida inteira, freqüentador da Lapa, no Rio, do Cassino da Urca, do Hipódromo da Gávea, personagem de mil aventuras que ia contando aos interessados. Gostei da figura imediatamente.
Seu nome era Plácido. O título de Tio foi imediatamente anexado. Tio Plácido.
Depois de um tempo, foi ficando complicado viver a vida escondida dele e, em uma reunião em meu quarto, decidimos “abrir”, como se dizia à época, pro Tio Plácido. O encarregado foi seu filho. Ele, com todo o cuidado, explicou para o pai que fumávamos, que não fazia mal e que era bem melhor do que o uísque que ele gostava de bebericar. A reação dele não poderia ter sido melhor: “olhe, meu filho, se vocês estão fumando é porque deve ser uma coisa legal, que eu não criei filhos bobos: quero experimentar”.
Quando recebemos a notícia a alegria foi geral. Tínhamos que armar uma ocasião e um lugar para o portentoso evento. Afinal era a primeira vez que iríamos “aplicar” uma pessoa mais velha – estávamos todos ao redor dos vinte anos, e ele já para lá dos seus cinqüenta.
Um amigo da turma tinha um apartamento alugado na avenida São Luís, enorme, daqueles com coluna no meio da sala, esparsamente mobiliado. Nos reunimos todos lá, em uma determinada noite, com um fumo criteriosamente escolhido pelo João, o expert da turma no assunto. Enrolamos alguns baseados, providenciamos o mitológico suco de laranja, caso ele não gostasse – havia o mito, naquele tempo, de que suco de laranja cortava o efeito –, e comidinhas para quando batesse fome. Acendemos os “charos” e botamos na roda com o cuidado de não deixar o coroa fumar demais na primeira vez.
Sabe como é nessas situações, quem não experimentou já deve ter pelo menos visto em filme. A conversa ficou difusa, o ambiente enfumaçado, muita risada e muita fome. A famosa larica.
Depois de um tempo, notamos que Tio Plácido estava sentado em uma poltrona, o olhar meio perdido na distância.
Perguntamos: “E aí, Tio Plácido?”
Ele demorou um pouco e disse: “Eu estava aqui pensando numa casinha lá longe, com uma janela acesa e todo mundo que eu gosto dentro... Será efeito?”.
Concordamos todos às gargalhadas. “É sim, Tio Plácido, é efeito”.
Desse dia em diante largou o álcool e virou adepto. Toda hora queria fumar um, classificava os diferentes tipos e dava sua opinião de recém especialista.
Anos mais tarde, em uma viagem ao Rio, resolvi procurar por ele. Parecia um velho hippie e estava ocupadíssimo arrumando suas coisas para colocar em uma camionete Bandeirante e ir tentar a vida na Transamazônica: “é a nova fronteira”, disse convicto.
Nunca mais soube dele e não sei o que é que deu. Mas hoje amanheci anos setenta, senti uma saudade imensa dele e daqueles tempos mais ingênuos quando ainda era possível cruzar com doces tios plácidos.
Ele demorou um pouco e disse: “Eu estava aqui pensando numa casinha lá longe, com uma janela acesa e todo mundo que eu gosto dentro... Será efeito?”.
Concordamos todos às gargalhadas. “É sim, Tio Plácido, é efeito”.
Desse dia em diante largou o álcool e virou adepto. Toda hora queria fumar um, classificava os diferentes tipos e dava sua opinião de recém especialista.
Anos mais tarde, em uma viagem ao Rio, resolvi procurar por ele. Parecia um velho hippie e estava ocupadíssimo arrumando suas coisas para colocar em uma camionete Bandeirante e ir tentar a vida na Transamazônica: “é a nova fronteira”, disse convicto.
Nunca mais soube dele e não sei o que é que deu. Mas hoje amanheci anos setenta, senti uma saudade imensa dele e daqueles tempos mais ingênuos quando ainda era possível cruzar com doces tios plácidos.