16.6.10
Excelências
Sergio Pinheiro Lopes
A primeira vez, que me lembre, em que olhei realmente atento a uma pessoa trabalhando de um jeito admirável foi em uma lanchonete na década de setenta. O sujeito tinha disposto tudo o que usava, os ingredientes do que preparava, os utensílios de cozinha – pratos, talheres, instrumentos, panos, guardanapos –, de tal forma que conseguia dar conta do movimento do lugar, sem deixar ninguém esperando em demasia, produzindo um lanche de primeira qualidade. Vê-lo trabalhar era assistir a uma dança harmoniosa em que até os inesperados incorporavam-se aos movimentos daquele balé sem música.
De lá para cá, fui botando reparo, como se diz em Minas. Encontrei ao longo da vida profissionais muito bons no que fazem.
O próximo de que me lembro é o Branko, um iugoslavo (país que nem existe mais, e hoje não saberia dizer se ele era sérvio, croata ou montenegrino) que possui uma pequena oficina mecânica lá pros lados do centro de São Paulo. Além da capacidade de diagnosticar, freqüentemente, os defeitos de um carro apenas de ouvido, sempre foi extremamente eficiente e escrupulosamente honesto com seus clientes.
Não era incomum que me mandasse tomar um cafezinho na esquina e voltasse logo, pois “o que o carro tem não é nada, e minha oficina não é estacionamento para você deixar o carro aqui o dia inteiro”. Quando voltava em quinze ou vinte minutos, não era difícil ouví-lo dizer que o problema estava resolvido e que não era nada. Custo zero.
A partir daí, passei a procurar profissionais como ele. Que maravilha a vida se tivesse um encanador, um dentista, um eletricista ou um médico como o Branko, com o dom profissional de serem os melhores no que fazem.
Estou sempre de olho para descobrir esses bailarinos. Posso dizer que, se não os achei em todas as especialidades, encontrei-os em muitas: a Dona Mafalda, que cuidou de mim e dos meus; a Christina, minha dentista; seu Clementino, das máquinas de lavar; o Ronaldo, por muitos anos meu médico de todas as horas e de todas as aflições; o Ivaldo Bertazzo, bailarino de fato e o melhor exemplo da sua geração; o Laerte, cartunista genial, o Dave van Ronk, poeta e músico da geração Beat que abriu as portas do Rock & Roll para a década de sessenta; a Vera Capovilla, mestra da cirurgia e do aprender constante; meu irmão, o melhor professor que conheço; o John Howard, introdutor do grafitti no Brasil, e muitos outros. Todos, sendo exímios no que fazem, deram muito mais qualidade à minha vida, excelências verdadeiras em suas profissões.
Tudo isso me veio quando estava degustando um prato que chamei de “Contra do Paulo César”, o “Baianão”. O Paulo César é chapeiro, um desses mestres de que falo. O tal do contra que ele prepara é dessas coisas de comer gemendo, de tão bom. Trabalha em um bar, do seu Mário – já conhecido de muitos por seus petiscos e pela comida excelente, a preço justo - ali em Pinheiros. Pit-stop em um bar desses é para gente que sabe das coisas.
Alguns desses artistas a vida levou para longe de mim, forçando-me a sair a campo para achar improváveis substitutos, mas muitos outros estão ao meu redor até hoje.
Lembro-me de que uma das coisas que meu inesquecível professor de natação e de vida, Kanichi Sato, me dizia, era que “brasileiro tem a mania de querer passar com nota cinco”. Não sei se essa é uma verdade só dos brasileiros, se é característica do bicho homem, ou se era exagero didático do mestre. Sei dizer que foi e é privilégio meu desfrutar, conviver, usufruir, partilhar e assistir a vida com essas Excelências que decidiram, para a felicidade dos que os cercam, passar no exame da vida tirando nota dez. Com direito a diploma de honra ao mérito e fitinha azul no canto.