20.11.10
Casas
Sergio Pinheiro Lopes
Gosto de casas.
Quando era menino, havia mães de amigos ou de conhecidos que eram tão obcecadas com limpeza, que nos obrigavam a tirar os sapatos e andar deslizando sobre recortes de tapete, para não arranhar o parquete, o assoalho, como se diz hoje em dia. Algumas chegavam ao paroxismo de cobrir os sofás e poltronas com plástico, para que não estragassem. Conheci também fanáticos que faziam o mesmo com bancos de carros. Lembro de sentir que havia uma inversão aí: as pessoas é que se adaptavam às coisas e não o contrário, como seria natural.
Prefiro casas gastas pelo uso.
Não me incomodam as paredes descascando aqui e ali, as manchas levemente escuras produzidas pelo calor das lâmpadas nas paredes e nos tetos. Até gosto. É sinal de casa habitada por gente há muito. Com histórias acontecidas entre os acenderes e os apagares dos dias e das luzes.
Sofás puídos, marcas de brasa de cigarro ali e acolá, poltronas destruídas por unhas de gatos ou mordidas de cachorros, tapetes manchados, marcas de copos em mesas – tudo ligeiramente disfarçado, decorado melhor dizendo, com um quadro, uma colcha, um porta-copo, uma tapeçaria, ou o que quer que seja. Gosto até de torneira que pinga (politicamente incorreto, bem sei), e marcas em batentes indicando o progresso do crescimento das crianças. Livros e discos empilhados fora do lugar. Jornais lidos. Tudo isso dá vida. Mostra que há moradores, que a vida transcorre com seus mil pequenos desastres seguidos de suas pequenas e cotidianas imprecações. Afinal, as coisas são feitas para serem usadas.
Compro coisas usadas com muita freqüência. Na verdade, quase que só. Mobílias, roupas, coisas de cozinha, objetos que acho curiosos, como uma bengala espanhola ou um telefone militar, por exemplo, comprei ao longo dos anos. Procuro sempre pelo que me diz alguma coisa, que se relacione com alguma parte de mim ou que ache particularmente belo ou interessante.
Carro novo, que me lembre, comprei pela última vez em 1976. Assim mesmo porque meu pai estava por trás da história. Acho bobagem comprar carro zero. Um semi-novo, até vá lá, mas um usado tem-se que procurar, levar a mecânico e funileiro para avaliar o estado, discutir preço e tal, mas podem ser, e freqüentemente são, ótimos. Mesmo com alguns milhares quilômetros; além de mais baratos, já vêm amaciados.
Mas, de volta às casas.
Sabem essas casas modernas, construídas e decoradas por medalhões, com tudo no seu lugar perfeito, simétricas, bem planejadas, nada destoando? Não parecem casas de vitrine? Estáticas como fotos. Para mim é essa a impressão que passam. São de vários estilos, é claro, e existem até aquelas que são decoradas propositadamente, como se os objetos, móveis, tapeçarias tivessem sido escolhidos pelos donos ao longo da vida.
Mas logo, o que é falso se revela.
Pelo modo como as coisas se comportam. Em casas habitadas, as coisas migram. Mais ou menos, conforme o gosto do dono, mas migram. Naquelas outras nada migra. Nada troca de lugar. Os quadros são medidos cuidadosamente para as paredes onde provavelmente vão morar para sempre. Têm de combinar com os móveis, com o ambiente programado e por aí vai. São casas opacas e não têm histórias. Nada de aconchego, de passagem humana por lá. Não sei vocês, mas a mim não deixam à vontade, esta a verdade.
Jardins também podem ser planejados hoje em dia. Não mais aquele jardineiro da vizinhança, seu Fulano, que ia combinando as plantas de acordo com a disponibilidade e o gosto do freguês. E que, de tanto em tanto tempo, virava um mato só e era preciso esperar seu Fulano passar para dar um jeito, isso se coubesse no orçamento do mês.
Gosto de freqüentar e morar em casas assim, cheias dos disfarces, das histórias, dos objetos migrantes. Quadros, por exemplo, quando migram, são incríveis. Dão uma nova perspectiva a qualquer lugar. Instituem novos ângulos, novas vistas, novas belezas na vida de todo o dia.
Afinal vivemos em um mundo usado, e muito.
Existem lugares na minha cidade hoje em dia, que só reconheço por uma velha grade de bueiro, por paredes velhas descascando, ou por casa de gente antiga, que ou não liga mais para estas coisas, ou então não tem energia ou dinheiro para mexer nelas. Fazem-me bem. Saber que são usadas há muito tempo, que muitos passaram por ali. Gosto de lugares assim, com o chão gasto pelos passos, poltronas afundadas por horas de leitura agradável e quadros itinerantes.
Também eu pertenço ao universo dos usados. A casa da minha alma, meu corpo, traz as marcas e os arranhões da vida escritos em seu assoalho, mostrando, ao menos para mim, a minha vida que passou e vai passar. Bem mal usada, por vezes, esta casa que sou. Mas bem usada também, pois que já viu muita festa, já teve muitos visitantes e, embora sempre a pedir reparos como qualquer casa antiga que se preze, é organizada e agradavelmente usada naquilo que realmente importa.
Como disse, tenho preferëncia por casas e coisas com história. Usadas e ousadas.